Hoje estou um tantinho nostálgica. Achei umas fotos antigas e, um fim de semana na casa dos meus pais bastou para pegar meu velho notebook da época da faculdade e encontrar um texto, escrito há anos, falando sobre o meu avô. Foi uma grata surpresa, que me rendeu algumas lágrimas e também um pouco de saudade.
Nostálgica no meio de todas as palavras
O texto era tão verossímil, tão cheio de detalhes e cuidado, que reflete as palavras e os sentimentos que tenho até hoje. Me trouxe lembranças e algumas aspas de Seu Francisco, que eu já não esperava mais encontrar. Coisa que era comum nessa época de longas conversas, quando ele ainda estava por aqui.
Estou feliz de ter registrado este momento em forma de texto e com todo o meu sentimento, o olhar delicado de uma jornalista em formação, sensível às palavras. Era apenas um perfil para um trabalho de faculdade, mas o tempo se encarregou de transformar esse texto em presente e entregá-lo a mim, quase dez anos depois.
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Eu sei que o meu blog fala muito sobre beleza, moda e dicas de tudo aquilo que a gente mais ama. Mas o Conceito It também é parte de mim, costumo dizer que é o meu pedacinho no mundo.
Por isso, e por neste momento estar inundada nesse sentimento nostálgico em meio às minhas próprias palavras, peço licença – por um breve momento – meus queridos leitores. Hoje seria impossível não eternizar essa história, aqui no meu mundo.
O tempo de Francisco
O dia ainda mal começou e seu Francisco já se prepara para levantar. Cuidadosamente coloca os pés no seu velho par de chinelos, que a propósito ficam estrategicamente posicionados ao lado de sua cama.
O seu próximo passo é a preparação do seu café, tradição na casa e que agrada a muitos. É o segredo para começar bem o dia. A partir daí o dia é só serviço, não que precise, mas em 97 anos, seu Francisco descobriu que a disposição e o trabalho são remédios para driblar o tempo.
Seu trabalho é na garagem de casa, onde construiu uma pequena oficina. Ele pode passar horas lá construindo e reformando na companhia de seu pássaro preto, um fiel amigo, que através do canto parece se comunicar perfeitamente com o seu dono.
Enquanto espera pelo seu almoço, vai caminhando calmamente para o fundo da casa. Casa esta, que ele mesmo construiu em 1965, e que demoraria seis anos, até que finalmente pudesse levar sua família para nela morar. Muitas coisas mudaram deste então.
A história do jovem senhor que aprendeu a construir o seu tempo
A primeira que me prende a atenção é uma pequena horta, uma das últimas inovações de seu Francisco, que pretende ampliar o seu “cantinho do cuidar da terra”.
Todo este cenário remete-o aos tempos de criança, quando teve que deixar os estudos para ajudar a família trabalhando em uma fazenda do interior de Minas Gerais. A roça e o trabalho estão vivos e bem presentes em sua vida.
Seu Francisco…
Seu Francisco batalhou muito para ser alguém na vida. Quando pequeno podia até ser considerado como escravo de seus senhores, mas não conformado com sua condição, lutou por cada centavo que foi conquistando ao longo de sua jornada.
Conta que com muito custo, mantinha sempre uns trocados no bolso, e esses trocados… as vezes ajudavam até a pagar um cineminha pra quem quisesse se divertir. Apesar da simplicidade da vida, sempre conseguiu alcançar seus objetivos: Eu tinha dois terninhos de linho, um chapéu e um guarda-chuva. Era um rapazinho que se vestia bem”, conta com a inocência de uma criança.
O almoço está pronto e enquanto saboreia o alimento sempre grato e com muita fé em Deus, compartilha mais alguns momentos importantes da sua vida que são contados ao som de seus dedos que inquietamente batem contra a mesa, prova de sua constante agitação.
As rugas e a pele fina são marcas de tantos ensinamentos, que se pode passar a tarde inteira ouvindo sobre sua vivência.
O almoço termina e até o cafezinho da tarde, seu Francisco resolve então se presentear: o descanso em sua velha poltrona de couro no terraço da casa, como se precisasse da permissão do tempo, o chefe mais exigente de todos. A essa altura do campeonato, seu Francisco não devia nem mais satisfação ao tempo.
Enquanto descansa, continua a contar sua história. A próxima é sobre o amor de sua vida, sua grande companheira, aquela que ao seu lado, construiu um relacionamento verdadeiramente baseado em amizade. Ela tinha 10 e ele 16. Desde essa época já a observava com muita atenção e esperançoso sonhava com o dia em que seu desejo se concretizaria.
Algum tempo depois…
Algum tempo depois, em uma conversa informal com o pai da moça, prometeu-lhe que um dia tomaria a moça em casamento. O futuro sogro duvidou, no entanto, não vivera tempo suficiente para ver que seu Francisco era perseverante e quando a moça completou 17 anos, casou com ela.
Mais tarde, deixaram a cidade simples de Viçosa, em MG, e vieram tentar a vida em São Paulo, acompanhando o caminho da estrada de ferro, onde Seu Francisco seguiu carreira até se aposentar, há mais de 30 anos, com nove promoções registradas. Foi então que pararam em Cubatão, SP.
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O tempo com ele parece que voa, me sinto em outra década, me sinto dentro de sua história. Logo em seguida somos interrompidos e convidados ao café da tarde, bem no finalzinho da tarde mesmo. Acompanho Seu Francisco até a sala de jantar, onde enquanto saboreia seu cafezinho, põe-se a falar.
Seu Cunha, como também é conhecido, é um verdadeiro contador de histórias. O assunto agora é a família que construiu ao lado de dona Inez, a matriarca da família, que por cinquenta e oito anos, esteve ao seu lado, mas que há dezesseis enche a casa de saudade.
Enquanto conta sobre sua vida, mostra-me carinhosamente algumas fotos antigas de sua amada. Difícil conter as lágrimas.Os filhos, dez ao todo, deram continuidade a sua descendência de netos, bisnetos e trinetos.
Seu Francisco é um senhor muito carismático, prende nossa atenção com facilidade, e deixa qualquer relógio para trás com tanta disposição e história.
E assim a noite vai chegando tímida, enquanto ele, muito brincalhão conta suas piadas e dá detalhes às suas histórias, e quantas histórias!
Como a dos bailes que participava quando jovem, ou das brigas que se metia com os rapazes da rua: Pra me derrubar tinham que ser mais de dois”, interrompe.
“Pra me derrubar tinham que ser mais de dois”, interrompe.
Mas essas brigas não duravam, logo em seguida estavam todos amigos novamente e foi assim durante toda a vida dele: “Não tenho rancor de ninguém, nunca desejei mal pra ninguém. Em minha vida só construí amigos, nunca inimigos” completa.
Sinto-me realmente surpreendida com o tempo, que parece ir para onde ele quer. Contou-me sua vida, com uma memória invejável, com minúcias e detalhes, que muitos não saberiam contar.
O dia já se foi…
O dia já se foi, mais um pouco de prosa, até que chega o momento de me despedir. Realmente foi um dia e tanto, mas decido fazer contagem regressiva e acompanha-lo até os últimos minutinhos do seu dia.
Despeço-me com carinho, deste jovem senhor que conseguiu me encantar, como poucos conseguem. O que será que ele tem de diferente? Me pergunto sem saber a resposta.
Com a maior simplicidade do mundo, tira o seu velho par de chinelos e o coloca estrategicamente posicionado ao lado de sua cama, da mesma forma como o dia começou. E vai deitar, vai sonhar e planejar os seus próximos passos. E o tempo?! Ah.. o tempo para e dá licença para Seu Francisco passar, porque agora… ah agora, ele constrói o seu próprio tempo.
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